sexta-feira, 16 de julho de 2010

Algumas antigas histórias de dormir ... (II)

Conto:

A vampira na janela.


Hoje aconteceu algo estranho, é tarde e estou cansado, olho para fora e tudo está escuro, no som o mesmo cd deve estar tocando pela terceira ou quarta vez, sei lá, talvez eu tenha dormido e sonhado, mas a dor no pulso esquerdo e as marcas que parecem mordidas, meio apagadas, mas ainda assim mordidas, continuam ali como que pra rir da minha cara.
Bom, ainda falta meia hora para terminar meu turno de trabalho e ir para casa, as máquinas estão paradas, as luzes apagadas, menos as da sala onde estou.
Nada de especial aqui, é uma sala com uns 15 metros quadrados, com uma grande área aberta, desprovida de móveis, resultado de uma reforma que não teve fim. São cinco computadores, num deles estou eu, é o que dá de frente para a porta do setor, a sala é cercada de vidros por dois lados, para que nós possamos ver e ser vistos por todos.
Atrás de mim, a uns três ou quatro metros de distância há uma janela, tem uns dois metros de comprimento por um e pouco de altura e se abre para um trecho de mata fechada atrás da grande metalúrgica. Ela está trancada, como sempre permanece quando o dia vai acabando e fico sozinho. É nessa janela que tudo aconteceu, na realidade ou no sonho, enfim, sinto a cabeça pesada, tomei uns goles do café ruim e meio frio a essa hora para ficar “ligado”, mas o peso não diminuiu, acho que nada que uma boa noite de sono não cure quando eu finalmente chegar em casa.
O barulho foi fraco, quase não ouvi, pensei que fossem os ratos, sim, há ratos, as vezes eles dão o ar da graça, mas não gostam de música alta, por isso não vejo eles a algumas noites, virei para trás para ver se não eram meus amigos saindo de suas tocas e não vi nada, na segunda vez o ruído foi mais forte, mais identificável, unhas batendo contra o vidro, viro de novo e parece, se bem que agora, apesar de eu ter olhado muito tempo para o vidro não pareça mais, a marca de uma mão.
Acendo as outras luzes, tudo está bem claro agora, impossível, a janela fica a uns dois metros de altura pelo lado de fora e a um meio metro da parede de tijolos há uma cerca, enferrujada e feia, mas ainda bem firme. O corpo acostumado à cadeira e á posição incorreta em frente ao teclado reclama um pouco na hora de levantar, mas poucos passos me levam até o objetivo, a tal janela barulhenta e fantasmagórica, que provavelmente deixei mal trancada, mas que na verdade está bem fechada e agora, de pertinho, com uma nítida marca de mão no vidro.
Junto o caco de coragem que ganhei ao longo de minhas desventuras, giro a tranca, abro a janela e lá está ela, de pé, os olhos negros no rosto branco e bonito, talvez um pouco sujo, me olhando serenos, nada de medo ou pânico e nem surpresa, apenas o olhar firme e despreocupado. Move os lábios, belos lábios, e pede ajuda, que eu a tire dali antes que seja tarde, que eles cheguem, “eles”, estico meus braços, pego suas mãos e a puxo para cima, os pés descalços escorregando parede a cima, sim pés descalços em meio ao matagal que tem lá fora.
Agora estamos dentro da sala, apesar de assustado, embasbacado, o olho percorre e grava cada detalhe, sim, ela é bonita, cabelos loiros, um tanto desarrumados, deve ter, quem sabe uns vinte anos, apesar de numa olhada mais rápida parecer menos, chuto uns quinze centímetros de altura a menos que eu, sim, é meu número. As roupas são boas, não do tipo maltrapilhas ou “pirigueti” que combinariam mais com a situação, mas uma calça jeans justa e desbotada, um pouco esfarrapada em uma das pernas, próximo ao tornozelo direito e uma blusa discreta o suficiente para não mostrar muito e, no entanto, capaz de abalar a fé de qualquer um.
Não, não é uma mendiga, está mais para uma aluna da universidade que caiu de um caminhão de mudança a caminho de casa do que para uma sem teto qualquer.
Puxo uma cadeira e insisto para que sente, reparo em seus pés, sujos sim, mas não feridos, as mãos a mesma coisa, um anel dourado em cada uma das mãos, tudo muito estranho, me pergunto como ela pulou a cerca sem se machucar, ou melhor, como ela chegou até a cerca de pés descalços.
Sirvo a ela um copo de chá quente, ela agradece, a respiração parece agitada apesar da impressão de que tudo está tranqüilo.
Vou em direção ao telefone, consulto a lista de ramais procurando a segurança e ouço um sonoro não, ela larga o chá sobre a mesa mais próxima e pede para que eu não ligue, digo que ela precisa de ajuda, se há alguém atrás dela não sou eu quem vai poder ajudá-la. Ela chega mais perto, o telefone retorna ao gancho antes de ser atendido.
Ela pega em minha mão, diz que não pode explicar, diz que sim, que está fugindo, mas que não é a segurança quem vai poder lhe ajudar, pede apenas que eu a deixe ficar um pouco e me puxa para perto de si e, nossa, agora caiu a ficha, que mulher linda, meus dedos tocam seus cabelos e se dirigem para a nuca, naquele movimento que, depois de um certo tempo de experiência, você sabe no que vai dar, os rostos se aproximando, corpos tomando posição, respiração acelerada, batimento a mil...
Foi o telefone que me fez ver o teclado praticamente grudado na minha cara, quanto tempo que fiquei “apagado” não faço a mínima idéia, atendi no terceiro toque, era engano. Levantei e fui passar uma água na cara, na volta é que me liguei no copo de chá abandonado no canto da mesa e a marca, se é uma marca, da mão no vidro.
Só agora vi as marcas no pulso, é não combinam com velhas histórias de vampiro ou com sonhos malucos, mas doem pra cacete, acho que me enrosquei em alguma coisa e não vi, mais tarde cuido disso, provavelmente esqueci o copo de chá ali antes de ter cochilado, “apagado” é o mais correto e a marca no vidro, bom, vai saber, provavelmente alguma combinação de sujeira e vento.
Só não entendo mesmo é essa estranha vontade de comer carne crua que me deu de repente, que coisa não?

As vezes escrevo histórias que nunca chegam ao fim, aos poucos me perco no enredo e a trama desaparece, o objetivo some, mas essa até ficou boazinha...

Um comentário:

  1. Como sempre, seus textos são ótimos!
    Parabéns!!!
    Sabe que desde beeeem novinha eu adoro o que escreve, né? hahaha

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